terça-feira, 14 de junho de 2016

o ontem já era!

Nos dias de hoje podemos sair no bairro onde cresci de metro. Bem, não propriamente no meu bairro, mas perto, ao lado daquela que foi a minha escola secundária. Na zona onde os meus dias aconteciam, entre estudo, fotocópias, aulas, trabalhos de grupo, torneios de futebol, corridas, dança, almoços e conversas. Sigo a luz. Subo as escadas da boca do metro e chego à superfície. O cheiro é familiar e sinto quase esta ambiguidade de me sentir segura num bairro que tem fama contrária. O cenário, apesar das mudanças que o desenvolvimento e a Expo 98 levaram, continua a ser-me acolhedor. Os cafés continuam característicos, assim como as pessoas calorosas que me atendem. Há um conforto muito específico colado aos lugares e às pessoas com as quais crescemos, é a conclusão a que chego. Como se nos conseguissem amar de uma forma mais desinteressada ou natural. Se bem que isto do amor tem muitas vezes mais de escolha do que de natural.
O cheiro a relva cortada dança no ar juntamente com o calor. Cheira às tardes de primavera passadas na escola, debaixo dos pinheiros, à conversa, ao som das violas. Consigo ainda sentir os sonhos que pulsavam em cada um de nós na altura. Os dramas, a intensidade e, ao mesmo tempo, a simplicidade com que os dias eram vividos e o futuro se desenrolava à nossa frente. O presente que mostrava um mundo seguro naqueles que nos rodeavam e um futuro que lembrava que o mundo era enorme e nos esperava. Pensávamos que o percorreríamos todos juntos, na altura. A ingenuidade era grande.



Chego ao meu bairro. Quem viveu num sabe que a vida é feita em comunidade. Cresce-se em conjunto. Partilha-se os dias, as dores, as notícias, os medos e as alegrias. Compra-se o pão acompanhado e olha-se as estações mudarem com mais do que um par de olhos. O cão da vizinha é um pouco nosso também. As conquistas de um são celebradas em grande, por muitos. O mundo é um lugar menos solitário num bairro. Assim se espera.
Olho as árvores que agora se erguem altas, um pouco por todo o lado. Um espelho dos anos. Cruzo-me com pessoas que não conheço. As crianças já não brincam na rua. Os becos escondidos já não existem. Vejo adolescentes que ainda não eram nascidos quando eu lá morava e sinto o peso dos anos, como um filme a passar-me diante dos olhos. A maioria das caras já não são familiares e não deixa de ser esquisita esta coisa de reconhecermos um local como nosso, mas ele já não nos reconhecer a nós. As janelas avistam-se diferentes. Mudam-se as cortinas e as caras que espreitam. Não há amigos a chamar e a dizer adeus. Há amigos de outra gente. É outro pulsar que vai ao encontro do meu com cheiro a ontem. É possível cheirar a distância. Entranha-se devagar e espalha-se no sangue, anestesiando.



A minha praceta está envolvida num estranho silêncio. As janelas do 4ºandar permanecem fechadas, com as persianas corridas. Sinto-me menina por uns segundos. Desvio o olhar e agarro o presente. Sigo o meu caminho até à escola primária.



Sou rodeada por meninos e meninas com olhos cheios de esperança. Braços estendem-se com um sorriso franco. Após o recreio sentamo-nos debaixo da árvore que um dia já foi do meu tamanho. Olho para cima. A casa onde cresci ali ao lado. As janelas continuam fechadas. Desvio o olhar do passado e abro o livro.


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