terça-feira, 30 de setembro de 2014

leituras a 2

Porque há algo tranquilo nesta coisa de mergulhar num livro, sabendo que à nossa frente alguém faz o mesmo. Ainda que seja com um jornal.

Pinto cruzamentos, interseções de ruas, de avenidas. Nem imagina até que ponto a vida num cruzamento tem uma enorme riqueza de pormenores. Umas pessoas correm, outras procuram o seu caminho. Encontram-se lá locomoções de todos os tipos, carroças, automóveis, motocicletas, bicicletas; peões, distribuidores de cerveja a empurrar os seus carrinhos, mulheres e homens de todas as condições acotovelam-se, incomodam-se, ignoram-se ou cumprimentam-se, empurram-se, insultam-se. Um cru...zamento é um local apaixonante!
- O senhor é mesmo um sujeito estranho, senhor Daldry.
-Talvez, mas tem de reconhecer que um campo de papoilas é de um tédio mortal. Que acidente da vida pode produzir-se ali? Duas abelhas que se entrechocam em voos rasantes? Ontem, instalei o meu cavalete em Trafalgar Square. É muito complicado encontrar lá um ponto de observação satisfatório sem levar empurrões permanentemente, mas eu começo a ter prática e estava num bom sítio. Uma mulher, assustada com uma chuvada repentina, e que provavelmente queria proteger o seu ridículo carrapito, atravessou o largo sem tomar precauções. Uma carroça puxada por dois cavalos deu uma valente guinada para a evitar. O cocheiro teve perícia, porque a senhora em causa safou-se apenas com um grande cagaço, mas os tonéis que iam na carroça caíram na calçada, e o elétrico que vinha em sentido contrário nada pôde fazer para os evitar. Com o impacto, uma das pipas de cerveja explodiu literalmente. Uma torrente de Guiness derramou-se na calçada. Vi dois bêbados prontos a deitarem-se no chão para matar a sede. Poupo-a aos pormenores sobre a discussão entre o condutor do elétrico e o dono da carroça, sobre os passantes que se meteram na conversa, os polícias que tentaram pôr alguma ordem no meio daquela barafunda, o carteirista que aproveitou a confusão para ganhar o dia, enquanto a principal responsável pelo caos se escapulia em bicos de pés, envergonhada com o escândalo provocado pela sua falta de cuidado.
- E o senhor pintou tudo isso?- perguntou Alice, estupefacta.
- Não, naquela altura contentei-me em pintar o cruzamento...


[ Marc Levy, em "A estranha viagem do Senhor Daldry"]

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