domingo, 6 de setembro de 2015

quando o que lembramos já não é visível.


 
A casa da avó Amélia e do avô Filipe tinha sempre muitas flores coloridas à porta. As laranjeiras, pessegueiros e figueiras estavam sempre carregadas de fruto. Apanhar figos e uvas e comer com pão, ali, na hora. Era delicioso. A horta estava sempre um mimo, arranjada. Se queria descobrir o meu avô, era descer as escadas e entrar por ela adentro. A água do poço saciava a sede no verão. No tanque da tia tomava-se banho com os primos e no inverno cheirava sempre a lume. Na gaveta da mesa da cozinha havia sempre broa de milho. Chouriço, queijo de cabra e azeitonas nunca faltavam. O feijão com couve tinha um sabor especial, cozinhado no barro. Atrás da casa, tinha grandes conversas com os porcos, coelhos e galinhas. Foi-me impossível comer um coelho numa certa refeição, quando descobri que era um dos meus companheiros de conversa. Não foi bonito.
Em certos natais, a casa enchia-se das vozes dos filhos e netos. Esconder atrás do monte e atirar pedrinhas às motorizadas que passavam ao final da tarde, com os primos. A maioria nem notava que o fazíamos, para nós, miúdos, era um risco aliciante. Jogar às escondidas ao anoitecer, sentar no chão de cimento ou num banco de palha e ficar à conversa até às tantas a olhar as estrelas. Inventar histórias misteriosas e viver aventuras entre os pinheiros e as casas dos vizinhos.
Este verão, voltar foi diferente.
Silêncio. Mato. Ervas. Um poço sujo e quase seco. Abandono.
O trabalho desta vida de nada vale, no final das contas.
Mas se fechar os olhos, ainda sinto o coço nas mãos e a frescura da água a escorrer-me pela garganta num quente dia de verão. Ainda vejo o balde cheio de figos apanhados ao fim da tarde. O meu avô a tratar das couves com as suas mãos ásperas e fortes, o seu olhar doce. O avental da minha avó, o lenço preto e o chapéu de palha na cabeça. O lume aceso... que se apaga devagar.
 








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